A ESCRITA DOS OBJETOS
Adolfo Montejo Navas
No paraíso da objetualidade reinante, até mesmo naquele que não quer saber do belo mas acaba produzindo estética, o trabalho de Suely Farhi irrompe como uma fenda, carregada de certa dramaticidade, interessada em questões quase obsessivas de um novo diálogo da natureza do objeto e da meditação do espaço onde este se inscreve: um outro logos do objeto e um outro topos do espaço da arte. A artista escreve com objetos sobre uma superfície que, aliás, continua sendo considerada sacrossanta em diversos lugares, associando ainda qualquer parede e pintura aos bons costumes. As inscrições destes objetos são novos sinais, mas sua necessidade parece remontar-se às primeiras marcas de nossos mais antigos predecessores. Marcas de tempo indefinido que se integram dentro das imagens dos trabalhos, na medida em que em Suely Farhi, o objeto, o gesto e a marca não estão dissociados, são um só. Sinais não é só um trabalho sobre objetos, é o trabalho feito pelos objetos, ou melhor, o território que eles criam, seu comportamento/manifestação carregado de nova imagética (em outro campo expressivo, na fenda da poesia visual, a artista desenvolve uma topologia da palavra, entre seu signo e seu sentido, que aqui não é mostrado).
A condição de poesia buscada nestas obras, assim como a possibilidade de alimentá-las com um substrato simbólico não está longe daqui, mas sim da prática do raciocínio lógico. De fato, em todas as peças pode-se perceber um certo halo surrealista - apesar da quase fobia e relutancia que produz o termo na maioria da cultura brasileira-, no sentido de forças ocultas, de desvio lógico, que acaba produzindo uma certa tensão estética, um imaginário próprio. As obras de Suely Farhi, como acontece com Magritte, também mergulham na superfície das coisas e da arte: criam uma metalinguagem, um equívoco de representação, como o pincel pintando-se a si mesmo, fazendo um triângulo com a parede, um objeto escultórico com elementos da pintura, não isento de certo humor.
Na topologia deste espaço, onde os objetos estão convidados a dançar - “a dança da tesoura da uva”, com sua aparição e desaparição-, ou a manifestar-se quase espiritualmente - como o enigmático e oriental jogo circular criado pelo lápis e pela borracha - existe uma sequência que lateja, e que às vezes tem até tradução musical, como rondos. Outro exemplo é o trabalho feito com pregos, cuja frequência oscila criando ritmos e acelerações saltitantes, e cujo projeto original ainda deveremos esperar para ver, pois se trata de uma verdadeira e maciça ocupação de espaço, como acontece om outro trabalho, verdadeira “dança de martelos”, que também pede sua instalação exclusiva.
A dobradura, como outro conceito fundamental no trabalho de Suely Farhi, adquire forma na própria faca dobrada que está exposta, mas sobretudo adquire identidade no mesmo espaço da Galeria, pelo jogo de planos que esta obra desenvolve com sua fenda, com a continuação geométrica no objeto. De fato, a interação de movimento e espaço é uma característica comum de todas as obras. Tanto por este aspecto como pela fresta das várias incisões praticadas, ação tão morfológica quanto linguística, pode-se reconhecer uma característica fontaniana desenvolvida, muito além do gesto. A dobradura de Suely Farhi tem elementos materiais e conceituais, objetuaise espaciais em simbiose. Ela parte tanto do objeto quanto do topos onde este se inscreve, como se fosse uma “palavra zero”. O jogo com o suporte se dá também com a Galeria, com os planos, a superfície, com o seu volume, porém não só com a fisicidade, mas ao mesmo tempo com sua “aura”. A necessidade de “texturizar” os objetos, de permeá-los, e de que ganhem estatuto de independência, de que se inscrevam num contexto espacial maior, permite uma aparição cênica, um grau de surpresa, num efeito hiperrealista enganoso que tem muito a ver com a “escuta do acaso”, como gosta de significar a própria artista.
Este trabalho-pesquisa artística que inclui jogos de força e delicadeza não é minimalista porque “repotencia” a objetualidade de forma intensa, o que acaba sendo extremamente coerente: produz, além de inquietação, comtemplação. Longe de uma certa arte decorativa disfarçada, estas seis densas obras de Suely Farhi são suficientes para comunicar uma poética.