INSERÇÕES MIDIÁTICAS
Marisa Flórido
Propagandas e sinalizações
Quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chines segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraida, pelo contrário, faz a obra mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo.
(Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica)
Nas ruas de passagem e vias de rápida circulação, nas estações e transportes coletivos, a dimensão pública é um mero resultado dos movimentos mecânicos e dos trânsitos diários, dos trajetos apressados e autômatos? As relações que determinam os espaços públicos parecem suspensas na distração radical das massas.
Distração que se distancia da sensibilidade desarmada que Benjamin percebeu na fruição estética da arquitetura, do cinema ou das vanguardas de sua época (o surrealismo e o dadá). Benjamin saudava a atenção flutuante como a fruição estética daquele que deambula, do passante na cidade que não encontra seu caminho: é preciso estar distraído para receber o aroma de café saído sabe-se lá de onde, de que janela, e que repentinamente envolve-nos em plena rua, ou saborear a "doce curvatura" da esqui-na, para ocorrer logo ali um encontro excepcional, talvez fugaz, mas para sempre fixado na memória.
No entanto, a padronização, os roteiros cotidianos, apressados e autômatos nas metrópoles atuais nos deixam adivinhar as diferentes e singulares cidades que nos prometem suas esquinas? As relações que ali se estabele cem são contratuais: passes, bilhetes, documentos. A possibilidade dos en-Sejaros casuais é uma fugidia esperança? A massa distraída frui, como desejava Benjamin, os ritmos que o acaso produz nas cidades, como o motor que dá sabor aos dias e se imiscui aos fluxos de tempos pessoais e coletivos?
(...)
Mais próximos da poesia visual, as placas de Eliane Prolik trabalham sobre o texto e o design da sinalização viária transtornando sua codificação universal com referências às artes e à liberdade do olhar, como Pape, Nua sem saida, Não pare sobre os olhos (Curitiba, 2003-2004). De modo similar em VIIIIIDA (2010), Suely Farhi interfere nas faixas de passagem de pedestre em um importante cruzamento do centro carioca. Há ali uma alternância de pontos de vista: do meio ao fluxo de pedestres obedientes às leis de trânsito e do alto dos edifícios que o cercam (já que apenas desse modo é possível ver o conjunto completo). A visão distanciada permite perceber tanto a geografia redesenhada das esquinas quanto sua dinâ-mica: a coreografia repetida de carros e pessoas, duplo movimento de repouso e mobilidade - entre a distância e a proximidade, entre o ponto de vista do ator e do espectador, entre atividade e passividade, entre arte e vida, entre fora e dentro.
Placa poema de Fernando Gerheim, instalada por ocasião do projeto
Faixas-etc.,* em 2005, concebido e organizado pelo artista Jorge Emmanuel, trazia a indicação Eterno retorno. Somos reféns do tempo seriado da rotina, da falta de sentido das repetidas ações cotidianas, prisioneiros do ir e vir de um destino demarcado pelo calendário do trabalho. Mas Eterno retorno não sinaliza um tempo cíclico em seu movimento circular, imutável, sem começou ou fim, ou como sucessão contínua e invariável de instantes idênticos entre si, como o tempo reconciliado consigo mesmo. Também pretende fraturar, ainda que por momentos, o tempo automatizado e reverter o destino. Eterno retorno de Gerheim estaria talvez mais próximo ao que pensou Nietzsche: se nada foi criado, se tudo existe originariamente, os fatos são limitados e as situações também, por isso as combinações de forças em conflito que compõem cada um dos instantes em algum momento, se repetirão. Assim, vemos sempre os mesmos fatos, os pequenos detalhes, os mínimos atos, retornarem indefinidamente. É esse mundo de forças, eternamente ativas e em movimento, sem repouso ou equilíbrio, que é circular. Esse é o sentido de seu amor fati, o amor ao destino: amar a vida alegremente, em sua compleição única e múltipa, pois cada pequeno gesto se repetirá para sempre.
Movimento pendular entre a repetição e a diferença, entre linguagem e insignificância, entre objeto e ação, entre espaço e tempo. É па rереtição que se estabelece um código, é na diferença e no jogo de suas resções que se estabelece a significação. No gesto que se repete automamente no dia a dia, invadido pela sensibilidade poética, que talvez este cotidiano se recodifique.
Cesar, Marisa Flórido. Nós, o outro, o distante na arte contemporânea brasileira. Brasil, Circuito, 2014. página 192