LIVRO DE ARTISTA - UM RESUMO
Alex Hamburger
À Suely Farhi
Boa tarde Suely, Elaine, Paula, Leila, todos e todas, estou muito feliz em poder participar do lançamento do livro de artista da Suely, nesta primeira transmissão diretamente do ‘A & E Estúdio’ e ao mesmo tempo poder rever tanta gente querida.
Livro de artista, como é mais conhecido, mas também livro-arte, livro-poema, literatura visual e mais recentemente “impressos & publicações”, são os diversos nomes usados para tentar definir um formato cujo conceito é um tanto problemático pelo fato de que algumas vezes ele nem precisa ter os contornos de um livro propriamente dito, embora estas sejam talvez possibilidades um pouco mais radicais, que talvez possamos abordar melhor no debate q eventualmente se seguirá.
Antes de falar um pouco mais sobre o suas nuances, técnicas, história, e como o trabalho da Suely está inserido nessa categoria, gostaria de começar justamente pelo sugestivo título do livro, que muitas vezes é o elemento-chave que nos conecta a uma obra pelo fato dele poder nos transmitir uma boa noção sobre o trabalho como um todo. Com suas três palavras no infinitivo ANOTAR...APONTAR...APAGAR!!! pode ser entendido como um tríptico que nos remete à questão prioritária da comunicação, como definido na famosa formulação joyceana, via Haroldo de Campos, da obra como um complexo VERBIVOCOVISUAL. Sem dúvida, esse trabalho possui na sua essência essas três pontas, esses três vértices: a imagem, o texto e o poema com seus componentes semântico-fonéticos.
Assim é que nele, e na maioria dos livros desse gênero, palavras, imagens e signos se movem e se entrelaçam ao longo de suas páginas numa sequência não-linear, podendo ainda ser considerado uma exposição portátil, móvel, uma vez que esse livro foi originado a partir de uma mostra numa galeria, ou melhor numa “casa-galeria”, o que também o configura com potencial de expandir tanto o status de uma exposição de arte visual quanto a função básica do livro tradicional. Um outro aspecto que se pode apontar nele, e no livro de artista em geral, se encontra na formulação de um novo tipo de literatura, que desafia o “leitor/espectador” a um novo olhar e a uma nova relação com a página impressa (no nosso caso ainda digital) ou seja, a página passa a ser percebida como espaço alternativo e proposicional. Em verdade, assim como nos seus congêneres “livro-objeto” e “arte-performance”, existe uma miríade de possibilidades relativas ao que um livro de artista pode ser, múltiplas facetas que não daria para tratar aqui, diante de um universo bastante amplo como esse.
Mas creio ser de interesse geral lembrar que essa forma independente de expressão tem suas origens na primeira década do século XX com Mallarmé e o seu divisor “Un coup de dés”, uma verdadeira revolução tipográfica e formal, um feito único (imaginem que o ano era 1896, embora o livro tenha sido publicado somente em 1914) e que abriu o caminho para inúmeras outras opções que poderiam constituir o “formato livro”, além de ter sido uma técnica que viria a ser utilizada por todos os segmentos da arte experimental dos últimos 100 anos.
Ao mesmo tempo que Mallarmé, os artistas de vanguarda da primeira metade do século XX fizeram experiências pioneiras nesta área, dentre as mais notáveis a coleção “palavras em liberdade”, de 1919, dos futuristas italianos, alguma coisa dos cubistas com Léger e a parceria Sonia Delaunay/Blaise Cendrars. Mas foi sobretudo no Futurismo russo, por esta mesma época, que a modalidade experimentou uma fértil produção pela associação de poetas e artistas plásticos daquele movimento, como Khlebnicov, Kruchenick, Malevitch, El Lissitsky, Goncharova, etc. que passaram a confeccionar variadas formas de livros de artista. Na mesma época tivemos vários outros interessantes exemplos nessa linha da parte de dadaístas, notadamente com Kurt Schwitters, Marcel Duchamp, Hans Arp e Francis Picabia, e de um grande número de artistas mais ou menos ligados a esses, podendo se destacar Apollinaire e seus “Caligrammes”, Max Ernst, e um pouco mais tarde, a fabulosa programação “Livro-Bauhaus”, de 1925, de Walter Gropius e Moholy-Nagy, uma série de em torno de 14 volumes e um dos capítulos mais marcantes na história da arte dessa modalidade especial de livro.
No Brasil, por essa época, com uma ou outra exceção, como o livro-diário “O perfeito cozinheiro da almas deste mundo”, de Oswald de Andrade e seus companheiros da “Garçoniére”, apesar da triunfal visita de Cendrars ao país, o gênero só veio a ter uma maior repercussão a partir dos anos 50 e 60, numa primeira etapa com os adventos do concretismo e do neoconcretismo, presente nos trabalhos da parceria Augusto de Campos/Júlio Plaza, do paulistano naturalizado León Ferrari, das duas Lygias, Clark e Pape, Vladimir Dias-Pino, Valdemar Cordeiro, Hélio Oiticica, Wesley Duke Lee; e numa segunda etapa (anos 60 e 70) com os vários militantes do grupo “poema/processo”, com destaque para próprio Dias-Pino, Álvaro e Neide Sá e muitos outros, além dos vários “independentes” como Antonio Manuel, Mira Schendel, Anna Bella Geiger, Regina Vater, Arthur Barrio, Antonio Dias (os dois últimos mais voltados na criação de livros-objeto), etc., além dos muitos envolvidos com as práticas da “arte postal”, ou “arte correio”, cujos trabalhos tinham uma semelhança com o formato em pauta.
Mas o grande “boom” do livro de artista deu-se verdadeiramente a partir dos anos 80 e 90, quando o gênero passou a ser praticado, e bastante valorizado no meio, por um grande número de artistas, principalmente na Europa (com uma profícua difusão feita pela livraria de Ulisses Carrión em Amsterdan), e nos Estados Unidos (com a tentacular Printed Matter bookstore), tendo justamente nessa quadra infelizmente sofrido um refluxo no Brasil, não se sabe por quê, tendo em vista os episódios marcantes na nossa trajetória como acima narrado. Nos anos 90, ainda houve uma tentativa de retomada no país, embora bastante tímida, que contou com uma pequena contribuição deste locutor que vos fala, da Fernanda Gomes, Lenora de Barros, Flavia Ribeiro, me perdoem se esqueci de alguém, numa tentativa de reinserir essa técnica no circuito local, que ainda contou com a histórica exposição retrospectiva “Brasil, segni d’arte”, na Bienal de Veneza de 1993, com a curadoria de Márcio Doctors, a sua tournée por algumas capitais europeias culminando, no que se pensou que poderia ser uma retomada, no CCBB do Rio, em 1994. Mas, em verdade, o que se viu a partir daí foi uma perda gradativa de interesse de grande parte dos artistas brasileiros, no uso desse recurso, naturalmente com as exceções de sempre, o que faz com que a iniciativa da Suely seja ainda mais bem-vinda para quem sabe poder inspirar um contingente de novos artistas, e porque não, sacudir uma eventual inércia de todos que consideram válidos os rumos intermidiais pelos quais enveredou a arte de nossos tempos. Obrigado!
(In Palestra proferida por ocasião da live de lançamento do livro de artista da Suely Farhi promovida pelo A & E Estúdio). Rio de Janeiro, Agosto de 2020, ano da Covid-19).